O conservadorismo com verniz de esquerda

Front – Instituto de Estudos Contemporâneos

Fomos surpreendidos pelo texto A Luta Anti-Racista na Câmara Municipal de Porto Alegre, de autoria de Florence Carboni e Mário Maestri publicado no dia 3 de janeiro de 2021 no portal Sul21. O texto tem como ponto de partida o ato da jovem bancada negra recém empossada na Câmara de Vereadores de Porto Alegre que recusou-se a levantar e cantar o hino do Rio Grande do Sul. Cobrados por uma das parlamentares da direita porto-alegrense pela atitude considerada desrespeitosa, o vereador Matheus Gomes (PSOL), militante do movimento negro e antirracista, explicou que eles não tinham qualquer obrigação de respeitar um hino que exprimia ideias racistas e ainda desafiou a Câmara a debater o assunto e propor a modificação da letra do hino. A ação de Matheus Gomes e seus colegas rapidamente ganhou as redes com expressões de apoio da esquerda e da militância antirracista.

Não foi essa, porém, a visão de Mário Maestri e Florence Carboni. O texto escrito por eles pretende fazer algo pretensioso em poucas linhas: demonstrar que a caracterização do hino do Rio Grande do Sul como racista, especificamente o trecho “Povo que não tem virtude/ Acaba por ser escravo”, é uma imprecisão histórica ou, pelo menos, excede o sentido original do texto. A surpresa, no entanto, para além das poucas linhas, deve-se à fragilidade e à superficialidade do argumento levantado. O texto é simplório, o que é grave porque sabemos que os autores são respeitados e reconhecidos conhecedores da história do Rio Grande do Sul e intelectuais identificados com a esquerda e o marxismo. Além da pobreza de conteúdo, alertamos que o texto tem consequências políticas  conservadoras recobertas com verniz de esquerda. Em tempos de dominância de um senso comum assentado em mentiras e distorções da história em benefício de um projeto político ultraliberal marcado pelo reforço do racismo, machismo e homofobia, não há espaço para superficialidades por parte daqueles que têm o compromisso com a análise da realidade.

A abertura do referido texto é a seguinte: “O Hino Rio-Grandense é Racista? Ou melhor, as estrofes que propõe “Povo que não tem virtude/ Acaba por ser escravo” são racistas? Em um primeiro grau, não. Em um segundo, podemos dizer que são classistas, e, apenas em um terceiro, racistas. Mas não racistas anti-negro, como sugeriu o vereador-historiador porto-alegrense negro, apenas eleito. Ao menos no sentido da emissão original do texto, diversa da eventual recepção atual pela comunidade rio-grandense, sobretudo negra”.

Apesar de contundentes, os argumentos estão longe de terem alguma objetividade. Vale a pena pensar em algumas das afirmativas desta passagem. O que significa dizer que um texto não é racista no primeiro grau, mas sim no terceiro? O que são os “graus” do texto? Não sabemos, pois a afirmação não conduz a nenhuma reflexão, é apenas uma afirmação. Em que sentido é possível separar o conteúdo classista do conteúdo racista que o termo “escravo” carrega? Isso seria válido para a tradição greco-romana? E mais, seria válido para o Brasil do século XIX? Do ponto de vista metodológico da análise proposta pelos autores, é possível afirmar que o texto não é racista apenas levando em conta a “emissão original do texto”?

Esperava-se que mais à frente estes pontos fossem desenvolvidos, mas o que se vê é um conjunto de afirmações sem demonstrações que têm como único objetivo desqualificar o sentido original do ato de protesto da bancada negra porto-alegrense. 

Na sequência, o frágil argumento dos autores fica mais evidente: “Os “escravos”, na estrofe, não se referem a trabalhadores escravizados africanos ou crioulos. A letra foi desenvolvida no espaço da simbologia do século 19, tributária das representações da época sobre o mundo greco-romano. Como comprovam as estrofes retiradas do verso: “Entre nós/ reviva Atenas/ para assombro dos tiranos/ Sejamos gregos na glória/ e na virtude, romanos.”

Aqui há vários problemas. O primeiro deles é de ordem metodológica. A única evidência levantada por Florence Carboni e Mário Maestri para evidenciar seu argumento é a estrofe original do hino escrito na década de 1830. Isto sem qualquer problematização de seus possíveis sentidos, explícitos e implícitos. Os autores tomam acriticamente como verdade um argumento retórico da intelectualidade dos estancieiros do século XIX, que se utilizavam de referências da dita antiguidade clássica, como se isso esgotasse o conteúdo do hino rio-grandense.

Em segundo lugar, o argumento simplório passa por cima de qualquer contextualização histórica. Será plausível acreditar que no “espaço da simbologia do século 19” o conteúdo racial da escravidão brasileira poderia ser ignorado por qualquer intelectual que utilizasse o termo “escravo” num hino? Não seria ingenuidade ou má intenção fazer uma afirmação deste tipo apenas com o argumento de que na sequência a letra original faz menção à cultura greco-romana? Será que os estancieiros escravocratas gaúchos, ao compor seu hino, comportavam-se como Renascentistas italianos, talvez pela convivência com Garibaldi, e tinham em mente a Grécia antiga e não os trabalhadores à sua frente? Poderia-se esperar que este tipo de argumento viesse de intelectuais ligados à Nova Acrópole, mas não de acadêmicos marxistas. Como conhecedores da história, Carboni e Maestri deveriam ter a obrigação intelectual de considerar a influência da independência das treze colônias, da revolta negra no Haiti, da discussão abolicionista, dentre tantos outros fatores relevantes que imprimiram sentido ao termo “escravo” empregado na década de 1830 no Brasil. Como afirmou recentemente Tau Golin “Na cultura dominante do rio-grandense, como de resto do brasileiro, o conceito de escravo não conduz à categoria política, mas sim, devido às implicações sociais, culturais e históricas, à condição de ser de “cor negra”. Concreta e subjetivamente, portanto, o hino rio-grandense é racista!”.

Apesar de todas as evidências, Carboni e Maestri optam por uma interpretação simplória do hino. Pior, a superficialidade do argumento abre margem para a interpretação de que a cultura da classe dominante da província sul-riograndense no século 19 não era racista. Aqui, a separação entre a questão classista e questão racial que apareceu no início do texto pode ter consequências mais graves, tornando-se uma armadilha com repercussões reacionárias. 

Além disso, os autores reduzem a história do hino à sua escrita original no século XIX e ignoram que o texto foi alterado posteriormente. É importante perceber que esta alteração tem implicações diretas sobre o trecho mencionado e sobre o tema do racismo. Justamente, ela suprimiu a estrofe “Entre nós/ reviva Atenas/ para assombro dos tiranos/ Sejamos gregos na glória/ e na virtude, romanos.” por ser considerada anacrônica. Deve-se perguntar: porque o trecho “Povo que não tem virtude/ Acaba por ser escravo” não foi também considerado anacrônico e excluído em 1966? Pode-se acreditar que o termo “escravo”, neste momento, ainda fosse entendido conforme a tradição greco-romana e não no sentido do escravismo colonial brasileiro?

O texto segue: “A enorme midiatização do ato do vereador Matheus Gomes, da bancada negra do PSOL de Porto Alegre, deve-se possivelmente em boa parte ao preciosismo da denúncia. O fato de se ter mantido sentado quando tocaram o Hino do Rio-Grande do Sul deve ser vivamente aplaudido e apoiado, sobretudo como denúncia do regionalismo que corre solto no Sul e, ainda mais, por irritar a tal comandante Nádia. Não é uma Brastemp, mas …”

Por fim, já longe de qualquer pretensão explicativa, numa linguagem digna da nossa época em que prevalece a ridicularização como argumento, os autores fazem a seguinte exigência: “Certamente a bancada  do PSOL terá o mesmo comportamento quando da execução do Hino Nacional, da Semana da Pátria e, sobretudo, quando das celebrações farroupilhas, rememoração de levante dos estancieiros escravistas rio-grandenses. E, em vez de ficarem elogiando os “lanceiros negros”, que aceitaram lutar pelos seus senhores, homenagearão finalmente aos milhares de quilombolas e negros ‘fujões’ da Era Farroupilha”.

Como não há preocupação em elucidar as dinâmicas contraditórias que ao mesmo tempo diferenciam e unem a esfera nacional e regional, os autores igualam processos. Mais triste ainda, não é o desconhecimento histórico que leva os autores a firmarem o argumento torpe que fere a memória de tantos mortos em batalhas pela traição da oligarquia gaúcha e do império na conhecida chacina de Porongos. O recrutamento feito com a promessa de liberdade é algo menor no contexto do século XIX? A aceitação por parte dos escravizados diante da possibilidade real de libertação os diminui historicamente? A história ideal não existe senhores, ela é sempre complexa, contraditória e impõe escolhas que de modo algum estão previamente fadadas à vitórias ou derrotas.  Isso de modo algum é oposto às demais formas de resistência, como os quilombos e a fuga. Talvez os autores possam revisitar os escritos de Marx sobre a Guerra de Secessão dos Estados Unidos (1861-1865) e ler em boas palavras o que o velho alemão pensava dos escravizados que atenderam ao chamado de Abraham Lincoln para lutar na guerra. É provável que confundam uma sofisticada análise materialista da história com “preciosismo da denúncia”.

A justeza da ação da bancada diante do hino não está contida nela mesma, seriam incontáveis as vezes em que muitos não se levantaram para entoar hinos ao longo da história. A justeza está em que este ato joga luz e é uma continuidade da luta e da memória dos homens e mulheres que eram fortes, aguerridos, bravos e com virtudes que não viviam na Grécia ou Roma antiga, elas e eles constituíam a força de trabalho de uma província do Brasil escravocrata do séc. XIX.