por Lauro Almeida Duvoisin, integrante do Front
O cenário político atual está nos ensinando várias lições. Como sempre, a crise produz um acirramento das contradições e um aceleramento do tempo histórico. Um dos aprendizados que está em curso no interior da esquerda é a retomada da luta pela hegemonia na sociedade. Um sinal importante disso é o grau de disseminação alcançado pelo antifascismo em diferentes setores da sociedade brasileira. Longe de ser um mero modismo, esta adesão revela a existência de um importante trabalho feito pela esquerda de esclarecimento do significado político do governo atual e de denúncia de sua natureza fascista. Afinal, de que outra forma se explicaria que um conceito que até recentemente estava ausente do vocabulário do cidadão comum, como “fascismo”, tenha se popularizado tão amplamente? Este fenômeno nos indica a importância do trabalho ideológico que a esquerda vem desenvolvendo.
Mas qual é o lugar da luta ideológica dentro da disputa política? Para responder a esta pergunta é necessário olhar para a lógica de funcionamento da própria política. A noção de que o exercício do poder é uma via de mão dupla é antiga. No entanto, devemos a Antonio Gramsci a formulação mais elaborada de que o exercício do poder se dá através de dois movimentos complementares: a coerção e o consenso. A coerção se refere aos instrumentos de força que o grupo dominante detém e aplica aos dominados. Neste sentido podemos citar a lei, os tribunais, as forças armadas e policiais e todo o conjunto de instituições que impõe obrigatoriedade às condutas individuais e grupais. Já o consenso, ou consentimento, se deve à disseminação de valores, crenças, afetividades, ideias e conceitos que perpassam a subjetividade dos dominados e que os induzem à aceitação da ordem social existente. Neste caso também uma série de instituições contribuem para a construção do consentimento: família, escola, universidades, igrejas, grupos de comunicação, etc. A estes dois elementos constitutivos das relações de poder Gramsci denominou de hegemonia. Sendo assim, qualquer sistema de dominação estaria alicerçado numa combinação original de coerção e consenso, ou seja, numa forma específica de hegemonia.
A luta de classes, portanto, é travada em amplo espectro. Ela atravessa a sociedade de cima abaixo moldando visões e práticas. Um dos métodos de disputa desta hegemonia é a disseminação ideológica, através da difusão de valores, crenças, afetividades, ideias e conceitos, ou seja, de visões de mundo. Assim como a classe dominante formula sua própria visão de mundo e as dissemina a partir de determinados centros, as classes dominadas também são capazes de fazê-lo. Neste cenário, a disputa ideológica que perpassa a sociedade depende em grande parte da existência de centros difusores de visões de mundo coerentes. Os exemplos concretos variam. Podem ser partidos, organizações sociais, escolas de pensamento, grupos universitários, coletivos auto-organizados, etc. O importante é compreender que a visão de mundo dos cidadãos comuns acaba sendo um amálgama de ideias, valores e crenças contraditórios entre si que são resultados de uma luta entre visões de mundo distintas. É este amálgama contraditório que constitui o senso comum de uma época.
Historicamente, a visão de mundo mais coerente e consequente com o lugar de existência da classe trabalhadora no capitalismo está alicerçada no pensamento socialista. É a partir de seus centros difusores que os intelectuais orgânicos das classes exploradas forjam e difundem os elementos ideológicos que sustentam a luta de classes no plano cultural. Neste processo, quanto mais convicta e coerente é a visão de mundo destes centros, maior capacidade de disseminação eles terão. Por isto é fundamental para aqueles que almejam construir uma sociedade igualitária o domínio teórico do pensamento revolucionário, o cultivo de novos valores e crenças, a prática de uma nova conduta e a construção de uma nova moral. Para este trabalho de disseminação é necessário também formar um amplo número de militantes capazes não apenas de reproduzir mas, principalmente, de traduzir os princípios que sustentam esta nova visão de mundo à realidade concreta das amplas massas. Por outro lado, é natural que, à medida que uma ideologia se dissemina, ela vá incorporando elementos contraditórios que o senso comum carrega. Não há nada de errado nisso, afinal a convivência de certos elementos ideológicos contraditórios na grande massa indica a plasticidade necessária de uma ideologia ampliar e incorporar-se ao senso comum.
Ocorre que quando certos fenômenos ideológicos se manifestam como “explosões” na esfera pública na verdade eles já vêm sendo disseminados na sociedade há muito tempo. Isto nos coloca uma nova perspectiva para compreendermos a nossa derrota e a ascensão da direita ao poder. Infelizmente, já faz algumas décadas que a esquerda vem negligenciado a importância da luta ideológica para a disputa de hegemonia. Predominou ao longo dos anos 1990 e 2000 a perspectiva de que o aspecto central da disputa de poder era a conquista dos governos, como se isto automaticamente representasse a conquista de hegemonia na sociedade. Ao mesmo tempo, demoramos a nos adaptar às novas ferramentas de comunicação e mediação social criadas pela computação e pela internet. Tivemos que sofrer derrotas significativas para reaprender a centralidade da luta ideológica. Começamos a compreender que a ascensão do movimento fascista no Brasil não foi mero resultado de contradições pontuais no seio da direita. Ela de fato foi produto de um trabalho ideológico bem feito ao longo das últimas décadas que se sedimentou no senso comum e forjou um novo consenso.
Se isto é verdade, a recente difusão da identidade antifascista no Brasil indica que já vem ocorrendo a reconstrução dos centros de elaboração e difusão ideológica da esquerda. Sem dúvida este resultado se deve ao trabalho de um conjunto de organizações de diversos tipos: editoras, jornais, grupos de estudos universitários, partidos políticos, movimentos sociais urbanos e rurais, coletivos jovens e estudantis, organizações da periferia, grupos virtuais, etc que compartilham uma mesma visão de mundo. Através deles foram publicados livros, produzido pesquisas, fomentado debates, organizado cursos, disseminado informações, realizado ações de denúncias, dentre outras medidas que foram esclarecendo um amplo espectro social sobre os interesses e as formas de agir da direita hoje.
Por fim, é necessário reconhecer também o quanto este processo ainda é incipiente frente às necessidades de nosso tempo. Ainda vivemos sob o impacto da ofensiva neoliberal e fascista em curso já há alguns anos. Para avançar na disputa pela hegemonia, teremos que superar divisões ideológicas internas, insuficiências metodológicas e ampliar muito o número de militantes envolvidos nas tarefas de produção e disseminação da ideologia socialista. Que os sinais positivos sejam reconhecidos e que sejamos capazes de seguir fortalecendo nossa capacidade de incidência na sociedade.