Anderson Barreto Moreira
“A humanidade sobreviveu. Contudo, o grande edifício da civilização do século XX desmoronou nas chamas da guerra mundial, quando suas colunas ruíram. Não há como compreender o Breve Século XX sem ela. Ele foi marcado pela guerra. Viveu e pensou em termos de guerra mundial, mesmo quando os canhões e as bombas não explodiam. Sua história e, mais especificamente, a história de sua era inicial de colapso e catástrofe devem começar com a da guerra mundial de 31 anos.”
(Eric Hobsbawm. A Era dos Extremos: o breve século XX)
A era da guerra total é o capítulo de abertura do consagrado livro do historiador britânico Eric Hobsbawm. Nele o autor busca a análise dos fundamentos não apenas das duas guerras mundiais, mas das determinações que transformaram a primeira metade do século XX na era mais sangrenta da história, onde as perdas de vidas humanas exigiram cálculos mórbidos dada a magnitude que atingiu a cifra de dezenas de milhões. Algo dessa dimensão marcaria profundamente não apenas a dinâmica do século XX, mas a própria dimensão da existência humana diante de sua capacidade de destruição com o advento da era nuclear. Entretanto, mesmo com as graves crises que marcaram o século passado, é provável que nunca antes tenhamos nos deparado com um risco de uma nova guerra total, capaz de produzir consequências mais catastróficas que suas antecessoras.
A atual guerra iniciada entre o chamado “bloco ocidental” (Estados Unidos, União Europeia/OTAN) e o bloco liderado por Rússia e China teve na Ucrânia seu primeiro confronto militar aberto. Não cabe aqui retomar o já distante fevereiro de 2022 e os antecedentes que levaram à confrontação, mas cabe relembramos que, naquele momento, ainda se acreditava que nenhum dos lados ousaria escalar a guerra para níveis maiores que colocassem em perspectiva a confrontação direta entre as principais potências líderes de seus respectivos blocos. Os acontecimentos do mês de setembro de 2022 não apenas deitaram por terra tais ilusões, como também puseram novamente diante da humanidade o risco de uma guerra total que parecia um fantasma da velha Guerra Fria. Se o início da guerra entre Ucrânia e Rússia provocou uma mudança qualitativa na crise mundial, os eventos de setembro não apenas alteraram novamente essa mudança, como tornaram ainda mais complexa a situação geopolítica e nos aproximaram ainda mais do risco de uma guerra mundial.
Escrevemos em artigo anterior que, passados seis meses do início do conflito, havia um aparente impasse em relação à evolução da situação da guerra. A Rússia mantinha – e ainda mantém – uma superioridade militar capaz de ditar o ritmo das operações militares, ganhando terreno progressivamente principalmente no leste e sul da Ucrânia. Por outro lado, os ucranianos já não possuem nenhuma capacidade própria de enfrentamento, praticamente todo equipamento e treinamento está sob comando da OTAN. Entretanto, esse aparente impasse foi quebrado, mas não pela pequena vitória tática obtida no leste e propalada como uma ofensiva capaz de vencer os russos, ainda que tenha contribuído para tal. Esse impasse foi quebrado por um conjunto de agressões, sendo a maior delas contra a China por parte dos Estados Unidos quando da visita de Nancy Pelosi à ilha de Taiwan. A partir disso, se havia alguma dúvida da necessidade de uma preparação para a confrontação contra um império que luta para não deixar de ser hegemônico, todas as peças do tabuleiro foram derrubadas. Não há mais jogo cordial.
A Rússia interrompeu todo e qualquer fornecimento de gás para a Europa como retaliação pelo constante suporte dado à Ucrânia. Ainda que a União Europeia declare que possui 85% de estoques de gás para sobreviver ao inverno, os protestos da população se tornaram diários e vão ganhando contornos cada vez mais dramáticos devido aos preços e aos já anunciados blackouts programados para que a indústria não seja paralisada. Calcula-se que no Reino Unido quase 1/3 da população talvez não consiga pagar pelo preço do fornecimento de gás para calefação durante o inverno. O governo propõe o congelamento de preços e um pacote bilionário para tentar enfrentar a crise. Nesse mesmo Reino Unido, assumiu como primeira-ministra Liz Truss, ex-secretária de Assuntos Exteriores de Boris Johnson que se tornou uma das mais belicosas contra a Rússia, afirmando que não se furtaria de usar armas nucleares contra a Rússia caso fosse necessário. E também é esse mesmo Reino Unido que com pompa e glamour enterrou sua mais longeva rainha, símbolo do colonialismo e racismo que marcaram tão bem a tradição imperial britânica. No seu lugar assume um rei cuja primeira imagem mundial foi humilhar um secretário por causa de um mal funcionamento de uma caneta. Eis o grande império.
Enquanto isso, em Samarcanda, no Uzbequistão, a reunião da Organização de Cooperação de Xangai (OCX) marcou o início de uma nova fase de cooperação e integração. Foi a primeira saída oficial de Xi Jinping do território chinês desde o início da pandemia e, na agenda oficial, ele e Vladimir Putin discutiram questões militares envolvendo Ucrânia e Taiwan. Para se ter uma ideia da profunda transformação mundial que está em jogo, basta olharmos a lista dos países que solicitaram a participação em algum grau na OCX: Afeganistão, Bielorrússia, Mongólia e Irã como estados observadores; Armênia, Azerbaijão, Camboja, Nepal, Sri Lanka e a Turquia (membro da OTAN) possuem o status de “parceiros de diálogo”; Arábia Saudita, Catar e Egito também receberão o mesmo status; Reino do Bahrein, República das Maldivas, Kuwait, Emirados Árabes Unidos e Myanmar solicitaram a entrada como parceiros. Isso sem contar os 8 países-membros efetivos: China, Rússia, Índia, Paquistão, Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão e Uzbequistão que, juntos, representam 25% do PIB mundial e 40% da população. Eis aí o motivo do completo desespero ocidental diante de uma Eurásia que vai se unindo em bloco e estendendo-se pelo mundo.
Todos esses processos ganharam um tom dramático a partir do dia 21 de setembro. O presidente Vladmir Putin ordenou a mobilização parcial de 300 mil soldados – a Rússia afirma ter capacidade de até 25 milhões em caso de mobilização total – para que nos próximos meses recebam treinamento e preparação para a guerra. É a maior mobilização desde a Segunda Guerra Mundial. Uma guerra que não é contra a Ucrânia: como afirmou o ministro da Defesa da Rússia, Serguei Shoigu, a Rússia está em guerra contra o “ocidente coletivo”, já que a Ucrânia por si só não tem mais nenhuma capacidade econômica e militar de combate. Estes soldados serão enviados para as prováveis novas regiões do leste e do sul após os referendos que estão ocorrendo com o intuito de solicitarem sua incorporação à Federação Russa. Caso se confirme a adesão, o que é o mais provável, em outubro a Rússia possuíra um novo mapa com mais de 100 mil km², mais de 5 milhões de habitantes e domínio sob o Mar Negro e, portanto, qualquer ataque a estas regiões serão considerados ataques ao território russo. “Não estamos blefando”, disse Putin, ao afirmar que poderá usar todos os meios, incluindo armas nucleares, como está previsto na doutrina militar russa, caso continuem as ameaças de integridade ao território da Rússia e o uso de armas nucleares contra o país. Ao mesmo tempo, Xi Jinping pediu para que o exército chinês passe a se preparar para lutar em guerras reais. Na Assembleia Anual da ONU, nenhuma esperança. Apenas discursos vazios e demagógicos da “luta do bem contra o mal” por parte de Joe Biden, afirmando que “não se podem tomar territórios à força”. Talvez os Estados Unidos estejam planejando devolver os territórios que pertenciam ao México no século XIX como forma de demonstrar na prática o que afirmam.
O século XX foi marcado pela guerra total e sua sombra constante. Mas, como também escreveu Hobsbawm, foi uma era de revoluções que evitaram a barbárie e deram esperanças ao mundo. Já estamos sob a sombra da guerra, lutemos para que venham as luzes das revoluções.