Anderson Barreto Moreira
É provável que depois de seis meses do início de uma guerra que desvelou ao mundo os reais interesses das grandes potências tenhamos que fazer um grande esforço para recordarmos de como estava o mundo antes do mês de fevereiro de 2022. A dinâmica dos processos que passaram a pautar o cotidiano da política internacional atestam que estamos imersos em uma nova conjuntura histórica com a abertura de novas rotas para a construção de uma nova ordem internacional. Os resultados ainda são incertos e as determinações que definirão essa nova ordem ainda não estão presentes por inteiro. Mas há sinalizações suficientes nestes últimos meses que nos permitem tirar conclusões parciais de quais mundos vivem seu crepúsculo e quais podem vir a viver a sua aurora.
Há um ano, quando esta coluna deu início ao esforço mensal de acompanhar a política internacional, presenciamos a debacle dos Estados Unidos no Afeganistão. Cenas trágicas, multidões penduradas em aviões ou fugindo pelas ruas. Enquanto isso, um recém eleito Biden afirmou que, apesar de tudo, a operação havia sido um sucesso. Trinta anos de guerras constantes no Oriente Médio que causaram milhões de mortes e deixaram vastas regiões devastadas podem ser o resumo da obra norte-americana na região. Seis meses depois, lá estavam novamente os Estados Unidos e seus aliados – OTAN e União Europeia – envoltos numa provocação ainda maior que resultou numa guerra que tem promovido a maior mudança geopolítica dos últimos 80 anos. Seis meses depois, em agosto de 2022, buscando encobrir a possibilidade de mais uma derrota acachapante – desta vez perante a Rússia – os Estados Unidos promoveram uma agressão de alto nível contra a China. Através da figura de sua representante da Câmara dos Representantes, a democrata Nancy Pelosi, realiza uma visita à ilha de Taiwan, território chinês que desde 1949, após a revolução, foi tomada pelos remanescentes nacionalistas chineses e declarada independente. Entretanto, menos de duas dezenas de países reconhecem a ilha como independente e a maior parte da comunidade internacional aceita o status de que Taiwan pertence à China, apesar de possuir um sistema político autônomo. Pelo menos desde meados da década de 1970, quando as relações entre China e Estados Unidos foram restabelecidas, este tema era dado como resolvido, inclusive com a meta de que até 2049 – centenário da criação da República Popular da China – a ilha fosse reincorporada definitivamente ao território chinês.
A visita de Nancy Pelosi foi cercada de tensão e forte resposta chinesa. É certo que, à primeira vista, foi uma demonstração de força dos Estados Unidos pois, apesar dos inúmeros pedidos e ameaças por parte da China, a visita foi realizada. Os chineses sabiam que um ataque direto, militar, contra a representante significaria o início de um conflito mundial e certamente essa não era uma opção, pelo menos não nesse curto prazo. Mas o que pareceu uma contundente vitória norte-americana e uma humilhação para a liderança chinesa se desdobrou em três derrotas para o ocidente. Primeiro, porque eliminou qualquer ilusão por parte da China em relação a como os Estados Unidos vão conduzir a sua batalha pelo controle do mundo. Segundo, porque a liderança chinesa acelerou – inclusive militarmente – os planos de reintegração de Taiwan. Terceiro, porque consolidou ainda mais a aliança sino-russa e a convicção de ambos em acelerar a integração eurasiática como meio não apenas de avanço econômico, mas de garantir sua própria existência .
Há seis meses, nos primórdios da guerra entre Rússia e Ucrânia, todos os olhos se voltavam para como essa guerra afetaria a Rússia. Não demorou muito para se perceber que a guerra era apenas um foco quente de um conflito maior, uma guerra dos Estados Unidos e aliados contra a Rússia. E agora, neste curto espaço de tempo, temos claro que se trata de um conflito mundial onde o chamado “ocidente” travará uma luta de morte contra o seu crepúsculo, provocando uma sequência de conflitos que mantém o mundo em instabilidade permanente, uma demonstração constante de força que oculta o medo e a fraqueza diante de uma possível nova ordem mundial, com múltiplos pólos e lideranças, com sistemas diferentes, que certamente terá suas contradições, mas que terá em comum a vontade de superação do domínio colonial-ocidental dos últimos 250 anos.
Passados seis meses do início da guerra na Ucrânia e incontáveis reviravoltas na geopolítica, estamos vivenciando uma espécie de interregno, onde nenhum dos lados parece ter força suficiente para avançar sobre o oponente, e isso é normal em conflitos de larga escala como esse. Mas os sinais de que esses impasses são apenas novos momentos de acúmulo de forças para o próximo round estão no horizonte: o inverno europeu e a provável crise social devido aos preços da energia; as eleições legislativas em novembro nos Estados Unidos e a provável derrota dos Democratas; o 20º Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês; as eleições brasileiras e a provável vitória de Lula e a cúpula do G20 na Indonésia. Estes são apenas alguns dos grandes momentos que podem contribuir para deixar menos nebuloso o intrincado caminho. “Há décadas em que nada acontece, mas há semanas em que décadas acontecem”, o velho Vladimir manda lembranças.