Anderson Barreto Moreira
Há 50, Eduardo Galeano lançava seu livro “As veias abertas da América Latina”, que se tornou símbolo das lutas e indignação diante do processo de colonização e implantação do capitalismo no continente. Meio século depois, com novos sujeitos e enfrentando novos desafios no caminho da soberania, a América Latina segue em sua batalha.
O mais recente capítulo dessa história pode ser contado a partir do comunicado do novo ministro das Relações Exteriores peruano, Héctor Béjar, de que o país está se retirando do Grupo Lima. Criado em 2017, numa espécie de “Santa Aliança” no capitalismo periférico, contando com 13 países, o Grupo de Lima foi símbolo do auge dos governos de direita que dominaram a cena política na região nos últimos anos. Mas na prática era coordenado, não oficialmente, pelos Estados Unidos – mais especificamente pelo então diretor da CIA do governo Trump, Mike Pompeu. Com o ex-chanceler Ernesto Araújo à frente, o grupo possuía apenas um objetivo: cercar e derrubar o governo venezuelano de Nicolás Maduro. Entretanto, 4 anos depois, uma pandemia e muitas reviravoltas estão redesenhando a situação.
Após a vitória de Andrés Manuel López Obrador no México em 2018 e Alberto Fernández na Argentina em 2019, o Grupo de Lima sofreu suas primeiras baixas. Em seguida, com a vitória eleitoral em 2020, que derrotou o bárbaro golpe de Estado do ano anterior, foi a vez da Bolívia anunciar sua saída. Agora quem abandona o barco é o país que propôs e que emprestou o nome da sua capital ao Grupo. Ainda que atores de peso na região – como Brasil, Colômbia e Chile – mantenham sua presença oficial, ao que tudo indica o fantoche criado já não tem forças para sobreviver. Isso porque estamos em meio a processos que podem ser profundos, ainda que neste momento não plenamente visíveis devido à pandemia e suas complexas consequências. A própria vitória de Pedro Castillo no Peru, filho de camponeses, professor de escola primária e vinculado a um partido de esquerda, empossado presidente após mais de um mês do encerramento das eleições, traz expectativas em relação ao futuro da região. Além de se retirar do Grupo de Lima, Castillo promete convocar uma assembleia constituinte, criar programas sociais, erradicar o analfabetismo, vacinar em massa e reorientar o papel do Estado.
Outro tremor no projeto conservador pode ser sentido no Chile, onde a rebelião popular de 2019 passa agora pelo seu momento de consolidação institucional. No início de julho a maioria dos 155 integrantes da Assembleia Constituinte – advindos dos diversos movimentos sociais, coletivos feministas, partidos de esquerda e organizações indígenas – deram início à tarefa, que se estenderá até março de 2022, de pôr abaixo a constituição herdada da ditadura de Pinochet (1973-1990), feita sob medida para a instalação do neoliberalismo no país. Com isso, é inevitável um certo clima de retomada do período do governo Allende, cujo projeto socialista foi interrompido brutalmente pelo golpe militar em 1973, e que agora retorna com novos sujeitos e demandas. Além disso, Gabriel Boric, de 35 anos, foi eleito o candidato que irá disputar as eleições em novembro representando a aliança de esquerda “Aprovo Dignidad”, desbancando o então favorito Daniel Jadue, do Partido Comunista Chileno. Pela direita, com a coalizão “Chile Vamos”, foi eleito Sebastián Sichel, 43 anos, atual ministro do Desenvolvimento Social de Sebastián Piñera. Caso Boric vença, é provável que o Grupo de Lima sofra um novo revés.
A troca de guarda no coração do império com a eleição de Biden coloca novos desafios num contexto geopolítico extremamente tenso. As disputas que envolvem os Estados Unidos, Rússia e China têm importantes imbricações neste contexto latino-americano em mudança. Além da já conhecida ajuda econômica e militar de Rússia e China para a Venezuela, recentemente teve início a construção do primeiro reator nuclear boliviano do Centro de Pesquisa e Tecnologia Nuclear na cidade de El Alto, em parceria com a empresa estatal russa de energia nuclear, a Rosatom. O reator será o único no mundo construído na altitude de mais de 4 mil metros acima do nível do mar. Com este projeto a Bolívia ingressa no pequeno rol de países detentores de capacidade nuclear. Ao mesmo tempo, o governo boliviano teve acesso a documentos que comprovam o envolvimento do governo do ex-presidente argentino Mauricio Macri no golpe de Estado de 2019, com o envio de armas e munições. Esse é mais um fato que tende a fragilizar a existência do Grupo de Lima no continente. Segundo os documentos divulgados, os equipamentos acabaram nas mãos dos setores golpistas e os governos do Brasil e Chile também estão sob investigação para verificar sua participação no golpe, indicando uma operação ao estilo “Plano Condor”, aquela que articulava as ações das ditaduras do cone sul, sob o comando dos Estados Unidos, durante os anos 1960-1970.
O Grupo de Lima, que representou uma tentativa de realinhamento geopolítico da América Latina em sintonia com os interesses diretos do imperialismo e das classes dominantes da região certamente foi uma resposta aos processos de luta e às conquistas dos governos progressistas que emergiram nos anos 2000. Agora, o próprio Grupo de Lima se vê derrotado, o que é uma oportunidade para reconstruir espaços de expressão da soberania dos povos latino-americanos e para o fortalecimento dos laços de solidariedade entre os países da região, tal qual sonhou e escreveu Galeano.
Publicado originalmente em BOLETIM REDE DE CRISTÃOS. Ano XXIX • Agosto 2021 • Nº 344