Boletim Ponto19 de Fevereiro de 2021 às 11:01
Quem diria que precisaríamos de um confinamento para refletir sobre o autoritarismo e a arrogância. Mas paciência tem limite e Daniel Silveira tombou. Enquanto isso, os militares parecem o carnaval na pandemia, todo mundo livre, leve, solto e ameaçando a sociedade.
1. Batata quente. Foi-se o tempo em que bastava a menção a um cabo e um soldado para ameaçar o STF. O deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), preso na terça-feira (16) por ordem do ministro do STF, Alexandre de Moraes, é um perfeito espécime do neofascismo brasileiro. O deputado atuou como policial militar na baixada fluminense, onde acumulou 80 dias de prisão por infrações enquanto exerceu o cargo entre 2013 e 2017, e quase foi expulso da instituição, como apurou o Intercept. Famoso pela foto onde quebra a placa da rua Marielle Franco, o amigo da família Bolsonaro não só defendeu o AI-5 e atacou ministros do STF, mas também é negacionista em relação à pandemia e já agrediu jornalistas. Ironicamente, agora, seu futuro depende do Congresso que ele defendeu fechar. Conforme avalia Moisés Mendes, a prisão de Silveira testa a rede de solidariedade dos extremistas de direita, enfraquecida desde o ostracismo de Sara Winter e companhia. A tropa de choque do PSL entrou em ação, mas a direita está dividida e é provável que uma votação em plenário confirme a sua prisão. Por outro lado, embora grande parte do campo progressista defenda a prisão, juristas de esquerda questionam os artifícios utilizados por Alexandre de Moraes. A ideia de que a postagem de vídeo na internet possa configurar-se como flagrante é contestada pelo professor Pedro Serrano, estudioso do Estado de Exceção. Já Arthur Lira está pisando em ovos, pois mais da metade dos deputados e senadores que ocupam cargos na cúpula do Congresso são alvo de investigação, com acusações que vão de estupro a fraude em licitações. Por hora, Lira se livrou da batata quente. A potencial crise institucional provavelmente será resolvida empurrando o problema com a barriga. O deputado deve ficar no xilindró esfriando a cabeça até que o Conselho de Ética da Câmara resolva o que fazer com ele. Enquanto isso, Bolsonaro prefere se preservar, e tenta domar a agenda política retomando a discussão do auxílio emergencial.
2. Inconstitucionalissimamente. A postagem que motivou a prisão do deputado Daniel Silveira foi desencadeada pelo debate sobre a ingerência das Forças Armadas na política brasileira. Por trás dela encontram-se as digitais do general Villas Boas, estrategista do projeto de poder dos militares. Em entrevista recente o general revelou, dentre outras coisas, que a pressão sobre o STF em abril de 2018 para condenar Lula foi obra do alto comando do Exército e não uma decisão individual. Para o antropólogo Piero Lernier, a confissão comprova que a ascensão de Bolsonaro foi uma construção de generais da ativa e reserva que se efetivou a partir de 2014 e teve o aval de todos que passaram pelo Alto Comando. Mas por trás das confissões de um general no final de sua vida, há um significado maior. Além do evidente desprezo pela democracia, José Luís Fiori ressalta que o depoimento de Villas Bôas serve para alertar possíveis desertores e lembrar os atuais comandantes das Forças Armadas que o comprometimento com o bolsonarismo é uma questão institucional. Em contrapartida, ao taxarem as ações de Villas Bôas de inconstitucionais e compará-las à ditadura, os ministros do STF Edson Fachin e Gilmar Mendes isentam-se agora da responsabilidade de terem participado da mesma escalada autoritária, ao lado dos militares, de Sérgio Moro e da Rede Globo. O verdadeiro dilema deste projeto de poder é que vai se desfazendo o mito de que os militares seriam o último bastião da moral e dos bons costumes. Segundo levantamento feito pelo PSB com base em dados do Ministério da Economia, na lista dos privilégios estão 700 toneladas de carne para churrasco, 139 mil quilos de bacalhau, 660 garrafas de conhaque e 10 garrafas de uísque 12 anos, além de aumento dos gastos em virtude dos desvios de função de militares que ocupam funções no governo. Apesar do envolvimento desastroso na política, os militares não pretendem abandonar seus cargos em 2022, avalia o ex-deputado José Genoíno, razão pela qual é necessário lutar para que eles voltem à caserna. O que ninguém sabe ainda dizer, é como fazer isto.
3. Armas, para que te quero. O bom senso diz que a prioridade do governo durante a pandemia deveria ser o investimento em saúde. Mas, na república das milícias, as armas vêm antes das vacinas. Às vésperas do carnaval, Bolsonaro editou quatro decretos que facilitam a compra de armas e munições por civis. O significado e o alcance dessas medidas ainda não são claros. Thaís Oyama afirma que Bolsonaro busca basicamente mobilizar suas bases, cumprindo uma de suas poucas promessas de campanha. Breno Altman argumenta que os decretos selam o pacto de Bolsonaro com as elites rurais, que historicamente defendem o armamento dos proprietários, enquanto Maister Silva diz que o principal objetivo é consolidar a aliança do capitão com as milícias. Há ainda quem diga, como Thiago Amparo, que existe no horizonte a possibilidade da formação de falanges armadas para uma solução de força caso haja uma derrota nas urnas em 2022. Talvez todos tenham um pouco de razão. Seja como for, especialistas dizem que, se aprovadas, as medidas vão dificultar a fiscalização do uso de munições em crimes a mão armada, pois as máquinas de recarga e projéteis deixariam de ser fiscalizados pelo Exército. Nesse sentido, o silêncio das Forças Armadas sobre o tema mostra a sua conivência com o descontrole da venda e do uso de armas no país. Os decretos foram criticados por um dos vice-presidentes da Câmara, Marcelo Ramos (PL-AM), que considera que as medidas invadem competências do poder legislativo e alerta que a discussão pode ser levada para o STF. A resposta da oposição foi levar ao Congresso uma enxurrada de projetos que visam anular os decretos presidenciais. Apesar da insistência de Bolsonaro, as pautas de cunho mais ideológico, como os decretos das armas e a modificação da lei orgânica das polícias, talvez não avancem no primeiro semestre, já que o Congresso pretende priorizar a agenda econômica.
4. Uma quarta feira de cinzas que não termina. Quando a enfermeira Mônica Calazans recebeu a primeira dose da vacina, no dia 17 de janeiro, achávamos que o pesadelo estava chegando ao fim. Trinta dias depois, ele continua longe de acabar. Na contramão do mundo todo, enquanto os índices de contaminação e mortes caem globalmente com o início da vacinação, o número de mortes no Brasil não recuou. Ao contrário, o que diminuiu foi a vacinação: cinco capitais não têm mais doses. Ceará e Bahia decretaram toque de recolher, com proibição de circulação de pessoas e comércio não essencial, entre as 22h e 5h da manhã. Considerando que o descumprimento generalizado do distanciamento social elevou em 51% os casos após o ano novo, é de se esperar que depois deste carnaval, venha uma nova onda de casos. Apostar na imunidade de rebanho e na cloroquina foram políticas deliberadas do governo federal. Agora, seja pela pressão da economia ou do STF sobre o General Pazuello, o governo ensaia discretamente uma mudança de discurso. Sai a cloroquina e entra o spray israelense como nova tábua da salvação, o que faz sentido para a base evangélica e da extrema-direita de Bolsonaro que nutre simpatias por Israel. Porém, nos bastidores, ele vai apostar mesmo é nas vacinas. Até porque este discurso faz mais sentido mesmo entre os seus seguidores nas redes sociais. O governo comprou mais 54 milhões de doses da Coronavac com o Butantan e aposta na liberação da Sputnik V. Não significa que podemos respirar aliviados. Além do atraso nas decisões em meses, a falta de planejamento é a marca registrada do Ministério da Saúde, como reconhecem os próprios técnicos. Se o Brasil tivesse negociado e comprado mais doses antecipadamente, concluiria a vacinação de todos os adultos até o meio do ano. Agora, ninguém sabe exatamente quando a maior parte da população será vacinada. Além disso, dada a demanda global, o mundo sofre com a escassez dos insumos, mesmo para os países ricos que planejaram as compras no ano passado, como é o caso do Canadá. Em meio a um cenário apocalíptico, apenas um setor parece sorrir: o mercado financeiro comemora que a crise da saúde brasileira é uma enorme oportunidade para negócios.
5. Malhando Jesus. Fraternidade, diálogo e amor são as palavras-chave da Campanha da Fraternidade deste ano. Três temas que, aparentemente, incomodam muito os católicos conservadores. Os críticos que iniciaram um movimento nas redes sociais para sabotar a campanha, alegam que ela divulga “pautas abortistas e anticristãs”. Dentre eles, encontra-se Olavo de Carvalho. O arcebispo ordinário militar do Brasil, Dom Fernando Guimarães, comunicou à CNBB que nenhum capelão militar subordinado a ele utilizará os materiais da campanha que tem como mote “Fraternidade e Diálogo: compromisso de amor”. Segundo o Arcebispo militar, “a quaresma católica não é espaço para se dialogar sobre temas polêmicos e contrários à autêntica doutrina da nossa igreja”. Além dele, somam fileiras também o Apostolado de Filhos de Santo Anastasio e os Templários de Maria, assim como o bispo de Formosa (GO) Dom Adair José, que aparentemente ignoram o trecho do “amar ao próximo” do novo evangelho. O material da campanha foi construído a partir das orientações do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (Conic) e se coloca contra as violências contra povos indígenas e a população LGBT, além de lamentar os efeitos da pandemia e a volta do Brasil ao mapa da fome. A pastora Romi Bencke, uma das autoras do texto-base, tem sido ameaçada pelas redes sociais por grupos conservadores. A CNBB publicou nota defendendo a campanha, que também recebeu o apoio contundente de Dom Pedro Stringhini, presidente da Regional Sul da CNBB: “Quem está falando contra a Campanha da Fraternidade é católico diabólico, é católico que não gosta dos pobres”.
7. Ponto Final: nossas recomendações.
.A busca da USP por uma vacina nacional contra a covid-19. Sete instituições brasileiras lutam contra o vírus, contra o terraplanismo governamental e a falta de verbas para produzir uma vacina 100% nacional. A USP é uma delas.
.Os três apartheids de nosso tempo. Na sua carta semanal para o Instituto Tricontinental, o historiador Vijay Prashed elenca os três desafios que precisarão ser superados no próximo período, as segregações financeira, sanitária e alimentar.
.Os movimentos sociais e a questão do alcoolismo. No Outras Palavras, Flávio José Rocha enfrenta um tema delicado para a esquerda e recupera a contribuição dos clássicos.
.Os “presentes” da CIA para o Brasil. José Álvaro de Lima Cardoso mostra como os diálogos da Lava Jato revelados pela operação Spoofing lançam nova luz sobre a ingerência estadunidense na política brasileira.
.Filme sobre massacre de maias por militares na Guatemala repercute no mundo. “A maldição da mulher que chora”, filme que mistura terror, suspense e realismo mágico, é a primeira produção guatemalteca a concorrer ao Globo de Ouro.
.‘Tigre Branco’ é corrosivo ao criticar as castas e desigualdades sociais. O Estadão mostra como “Tigre Branco” combina sarcasmo, violência e crítica anticapitalista para denunciar as desigualdades sociais.
.Nas sombras dos barracões, artistas de Parintins sofrem com cancelamento do Carnaval. O Brasil de Fato mostra como o cancelamento dos desfiles na capital paulista afetou os artistas amazonenses que trabalham nas escolas de samba paulistanas.
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Ponto é uma publicação do Brasil de Fato. Editado por Lauro Allan Almeida Duvoisin e Miguel Enrique Stédile.