Rafael Tatemoto, jornalista.
Um dos máximos clichês da esquerda – “pessimismo da razão; otimismo da ação” – parece mais necessário do que nunca: os recentes eventos na Bolívia e no Chile logo despertaram conjecturas sobre a possibilidade de uma nova contraofensiva progressista na América Latina. Se há evidentes motivos para comemoração, nossa situação interna exige mais cautela.
Prossigamos nos clichês: não se trata de responder se o copo está meio cheio ou meio vazio. Fatores de ordem internacional influenciam, positiva ou negativamente, a evolução do processo político doméstico. A questão é como a situação interna interage com potenciais ventos favoráveis vindos de outras nações.
Neste sentido, analisando a conjuntura política nacional, provavelmente estamos diante de um balde de água fria para a esquerda brasileira. Nenhum dos elementos internos de nosso atual contexto parecem favorecer uma mudança brusca de rumos na luta política.
Se alguém cozinhando afirma que não importa a sequência de procedimentos para a confecção do prato, dificilmente alguém se disporá a experimentar o resultado de tais feitos gastronômicos. Parte dos elementos implícitos no entusiasmo brasileiro com os fenômenos políticos nos dois países citados, porém, parece se basear em uma lógica parecida com esta.
Em outras palavras: no curto prazo, dificilmente repetiremos os resultados vivenciados no Chile e na Bolívia. Simplesmente por nos encontrarmos em uma situação oriunda de processos e fatores diferentes daqueles verificados nos referidos países
Ainda que sejam processos em aberto, as vitórias do MAS, na Bolívia, e da Constituinte, no Chile, são conquistas inquestionáveis de seus povos e, por consequência, dos oprimidos latino-americanos. Potenciais analogias com a situação brasileira, entretanto, são descabidas. Os dois eventos são resultados de processos que, por alguns critérios bastante relevantes, são inversos ao que podemos identificar na conjuntura brasileira.
A Constituinte chilena é fruto não só dos protestos iniciados no ano passado, mas também de uma sequência de movimentações iniciadas anos antes, em que a mobilização social foi hegemonizada por instrumentos da esquerda, os quais, concomitantemente, se renovaram. Basta lembrar as massivas manifestações em torno do caráter mercadológico e privatizado do sistema de ensino chileno.
A vitória no plebiscito aponta para o caráter da crise que foi resolvida: não se tratou apenas de uma crise de governo, mas do colapso de um regime de acumulação e forma de governo – o neoliberalismo. A derrota da Constituição de Pinochet deve ser lida nesses termos.
Na Bolívia, a própria aplicação do conceito “crise” parece não ser apropriada. O processo parece muito mais se encaixar em uma ação precipitada da direita boliviana, em aliança com setores internacionais. Fortalecem essa interpretação o fato de que a queda do MAS não foi precedida por uma situação econômica adversa e, posteriormente, pelo expressivo apoio ao candidato da organização golpeada.
A relativamente rápida resposta foi fruto não só da boa avaliação das gestões lideradas por Evo Morales, mas de anos de organização popular.
Esses são fatores decisivos e a realidade brasileira não poderia estar mais distante das verificadas nestes dois países.
No Brasil também passamos por uma crise, instaurada em 2013 e ainda não resolvida, que não se limita a uma crise de governo, ainda que o golpe contra Dilma Rousseff também tenha tido este caráter. Ao contrário do Chile, entretanto, logo após os primeiros sintomas do esgotamento da Nova República, que se apresenta como um zumbi político, as forças protagonistas que ditaram a dinâmica de mobilização social estavam, e estão, à direita. O Chile deu uma resposta à esquerda, via Constituinte. O Brasil caminha à direita, via desconstitucionalização.
A grande vitória eleitoral do MAS, antes de poder ser vista como uma esperança nos mecanismos eleitorais, deveria ser analisada com bastante prudência e autocrítica por parte dos brasileiros. Em quatro anos, não fizemos o que eles fizeram em um. E aqui, o fator diferencial, vale dizer novamente, é a organização das classes subalternas. No Brasil, este eixo foi reconhecidamente desprezado pelas forças majoritárias de esquerda na última década e meia.
Vivemos, portanto, uma paradoxal situação. As duas vitórias recentes são motivos de celebração para nós, enquanto latino-americanos. Enquanto Brasileiros, deveriam ser também razão para alguma reflexão e vergonha. Que o exemplo da paciência histórica focada na organização dos explorados nos sirva mais do que as ilusões com saídas rápidas e miraculosas.