Um cinturão, uma estrada: a estratégia da China para uma nova ordem financeira global

Sit Tsui , Erebus Wong , LauKin Chi e Wen Tiejun*

Em meados de 2013, o primeiro-ministro chinês Xi Jinping, anunciou uma série de novas iniciativas de comércio e desenvolvimento para a China e regiões circundantes: o “Cinturão Econômico da Rota da Seda”, e a “Rota da Seda Marítima do Século XXI”, projetos também conhecidos como “Um Cinturão, Uma Rota”, ou OBOR (OneBelt, One Road).¹ Em conjunto com o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB), as políticas do OBOR representam uma ambição de expansão espacial do capitalismo de Estado chinês, dirigido por um excesso de capacidade produtiva industrial, e por interesses de um capital financeiro emergente. O governo chinês salientou publicamente as lições da crise de sobrecapacidade no Ocidente que precipitou a Segunda Guerra Mundial, e promoveu essas novas iniciativas em nome de um “desenvolvimento pacífico”. Entretanto, a guinada para o OBOR sugere um cenário regional muito similar ao cenário que se desenhou na Europa entre o fim do século XIX e os anos que antecedem a Primeira Guerra Mundial, quando nações poderosas se debateram pela dominação militar e industrial. A estratégia do OBOR combina poder terrestre e marítimo, reforçando a atual hegemonia oceânica da China na no Leste Asiático.

Historicamente, na época da Dinastia Tang (618—907), o comércio chinês em expansão com o Ocidente motivou o mundo Islâmico a exercer controle sobre as rotas comerciais da Ásia Central e Ocidental, forçando a Europa – sob pressão da crise da prata causada por contínuos déficits comerciais – a buscar rotas comerciais orientais que a permitiram contornar as regiões Islâmicas. Um após o outro, Espanha, Holanda, Grã-Bretanha, e eventualmente os Estados Unidos, se tornaram potências marítimas dominantes, protegendo e expandindo seus interesses comerciais na Ásia Oriental.

Se o projeto OBOR fosse meramente “uma rota”, seria um pouco mais do que uma estratégia de poder terrestre tradicional, mas o OBOR abre um poder marítimo secundário ao longo da costa chinesa, apoiado pela vasta expansão territorial do país.

Na virada do século XX, o geógrafo inglês Halford John Mackinder propôs que uma forte potência integrando os canais de transporte e o comércio da Europa, Ásia e África em uma única “Ilha-Mundo” estaria pronta para dominar o globo.² Em 1919, ele escreveu que “quem controlar a Europa Oriental comandará o coração da terra; quem comandar o coração da terra comandará o mundo.”³ Na prática, contudo, ainda é necessário coordenar o controle das rotas terrestres com o transporte marítimo ao longo da costa dessa ilha-mundo.

O OBOR depende de uma série de delicados cálculos geopolíticos. Hoje, apenas três nações podem ser consideradas potências continentais: China, Rússia, e Estados Unidos. A China não pode simplesmente abrir uma nova Rota da Seda terrestre, porque seria inevitável passar pela Rússia. Desde que se tornou um poder imperial em meados do século XVIII, a estratégia geopolítica da Rússia tem sido orientada na direção da Europa, com uma atenção secundária a Ásia Oriental. Isso explica em partes porque a Rússia não deu grande importância à proposta da Rota da Seda chinesa, tendo em vista que a economia russa se beneficiou do aumento dos preços do petróleo anos atrás. Da mesma forma, a Rússia tomou a dianteira nas negociações com a nova União Econômica da Eurásia, que objetiva integrar e conectar a Europa com os antigos países da União Soviética da Ásia Central. Ou seja, não dizia respeito à China integrar a Ásia Central. Porém, como resultado da crise ucraniana, a Rússia enfrenta hostilidades da Europa e dos Estados Unidos, e com a queda global nos preços do petróleo, o país não tem escolhas senão se voltar para o Oriente e considerar seriamente a proposta da China por uma parceria estratégica trans-continental. Contudo, se as relações com a Europa melhorassem, a Rússia iria imediatamente regressar sua atenção para a Europa. Não importa o quão amarrados estejam seus interesses regionais, nem a Rússia nem a China podem colocar todas as suas apostas em um único lugar. Por isso a estratégia do poder terrestre chinês está sendo apresentada como o OBOR, um projeto específico da China.

Contudo, a China está ciente de que os Estados Unidos, por meio do fortalecimento de sua aliança com blocos de interesse central na própria China, se oporia aos empenhos do OBOR – tanto dentro quanto fora das elites dominantes – para reiterar sua influência sob a política futura de desenvolvimento da China. De fato, neste aspecto os Estados Unidos já obtiveram sucesso – a burocracia financeira chinesa adere à inabalável primazia dos Estados Unidos enquanto banco central mundial, tornando improvável o questionamento, e menos ainda o enfraquecimento da liderança dos EUA na ordem global. No entanto, não há dúvidas de que os Estados Unidos irão ajustar sua estratégia diplomática em consideração ao OBOR. O Irã, por exemplo, é uma parte importante da proposta do OBOR, e independentemente de quais sejam seus outros objetivos, o acordo nuclear dos EUA com o Irã foi um ajuste estratégico com o intuito de contrabalancear a influência da China na região.

Poder Marítimo e a Região ASEAN

Para um local de tamanho tão pequeno, Singapura detém uma influência desmedida de longa-data, além de importância estratégica. Com o Estreito de Malaca, o país controla um ponto de acesso primordial para as rotas de comércio marítimo que conectam Europa, África e Ásia. Singapura entende com clareza que sua sobrevivência depende de um equilíbrio entre o Ocidente e a China. O Ocidente valorizou o primeiro ministro de Singapura, Lee Kuan Yew, como um fervoroso e frio guerreiro determinado a parar o avanço do Comunismo na região. Assim, apesar dos laços de proximidade de Lee com oficiais chineses e sua simpatia pela eficiência do autoritarismo e corporativismo de sua ideologia dos “valores asiáticos”, Singapura nunca se tornaria país aliado da China. Lee permaneceu fiel aos interesses dos EUA até o fim: logo após Obama assumir seu cargo, ele assessorou os Estados Unidos em seu “pivô” diplomático para Ásia e o Pacífico, e abriu portos militares para ajudar com novos destacamentos militares dos EUA junto da região da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN). Dado este legado, a China não mantém ilusões acerca das filiações de Singapura.

Por essas e outras razões, a China quer abrir outro canal de transporte do sudoeste da China até o oceano índico, contornando o Estreito de Malaca. Outra rota em potencial para região sul passaria pelo Paquistão ou Bangladesh para o oceano índico. Em ambos os casos, o objetivo seria a conexão com Sri Lanka, onde um novo porto mundial abriria mais de um entreposto no oceano índico. ASEAN é o princípio de uma Rota da Seda marítima proposta pela China, mas é também uma região repleta de complexidades, e onde a influência dos EUA está profundamente enraizada.

O Desenvolvimento da China e o Sistema de Dólares dos EUA

Em anos recentes, a China assumiu um papel de destaque no estabelecimento de um novo conjunto de instituições econômicas internacionais, incluindo o Novo Banco de Desenvolvimento, o Arranjo Contingente de Reservas do BRICS, o AIIB, e o Fundo da Rota da Seda, assim como a Organização Cooperativa de Shanghai. Juntos, eles representam um contrapeso regional às entidades lideradas pelo Ocidente como o FMI e o Banco Mundial – e mais recentemente, o Banco Central Europeu – que dominaram a ordem financeira global desde a introdução do sistema de Bretton Woods após a Segunda Guerra Mundial. A China é seguramente o terceiro país na história, após a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, com a capacidade de moldar e conduzir um sistema global de finanças e comércio. É claro que em um futuro próximo a China não irá substituir o sistema de dólares dos EUA; poderia no máximo se equiparar. Após os Estados Unidos superarem o Reino Unido no sentido de liderar mundialmente a capacidade de produção industrial em meados do século XIX, levaram outros cinquenta anos e duas guerras mundiais antes que pudesse dominar as finanças globais. A China reconhece esta realidade, e promoveu consistentemente a AIIB e outras organizações como complementares, não competidoras, do Banco Mundial e do Banco de Desenvolvimento Asiático (ADB).

Na próxima década, contanto que nenhuma instabilidade grave perturbe a economia Chinesa, parece inevitável que o renminbi se torne uma das moedas mais importantes internacionalmente. Não obstante, é evidente que o renminbi, mesmo no decorrer de 20 anos, poderia desafiar o status hegemônico do dólar estado-unidense. Ao passo que uma economia capitalista se industrializa, a força de sua moeda depende da capacidade produtiva continuada do país, apoiada pelo governo e pela sociedade civil. Porém, na fase subsequente do capitalismo financeiro, a fonte principal da credibilidade de uma moeda é a força política e militar do país. Desta perspectiva, a posição inexpugnável do dólar estado-unidense enquanto moeda de crédito mundial deriva principalmente da enorme força militar dos EUA. Os EUA somam 40% dos gastos militares globais, mais do que o valor estimado dos dez países seguintes neste ranking combinados.

Obviamente, a expansão contínua da hegemonia militar não foi a única fonte da dominação financeira dos Estados Unidos. Desde a Segunda Guerra Mundial, empresas privadas e agências de governo nos EUA lideraram o mundo em inovação tecnológica, não apenas em manufatura de armas, mas em químicos, semicondutores, filme e televisão, aviação, computadores, finanças, comunicações, e tecnologia da informação. Todas essas inovações facilitaram a expansão global do alto valor agregado do capital. O fundamento do valor do dólar dos EUA, além da força militar e política estado-unidense, é por isso o monopólio da capacidade de inovação dos EUA em elevar o valor agregado do capital.

Atualmente, na China, um espírito de capitalismo utópico se generaliza em todos os níveis da economia, movido pela crença de que, enquanto empresas estatais constantemente rescindem ou se dissolvem para serem substituídas por empresas privadas, então a China será abençoada pelo miraculoso poder do mercado com capacidade de inovação para um alto valor agregado. Mas sem enormes investimentos em pesquisas e desenvolvimento sistemáticos, se torna incerto como concentrações dispersas de capital privado na China poderiam concretizar tais avanços em um futuro próximo. Consequentemente, é improvável que a moeda chinesa desafie o dólar estado-unidense, ou mesmo o euro. Ironicamente, a única força que mais se aproxima de derrubar o dólar, é o próprio sistema financeiro cada vez mais virtualizado dos EUA.

Na exportação de capital ao longo da última década, China carecia de um plano global para investimentos estrangeiros e desenvolvimento, as vezes se envolvendo em crises geopolíticas, como na Líbia ou no Sudão, e outras vezes em pântanos burocráticos, como demonstra seu papel na construção da linha férrea de alta velocidade no México e os projetos de portos no Sri Lanka. Estes equívocos resultam da falta de apoios sólidos e coordenação de organizações financeiras como a AIIB. Na medida em que a China se torna um importante país exportador, em grande parte tem evitado adentrar em alianças políticas ou financeiras explícitas que poderiam proteger seus investimentos estrangeiros em larga escala. Com a criação do Novo Banco de Desenvolvimento e o AIIB, contudo, os laços financeiros da China com nações vizinhas se tornaram mais formais e abrangentes. Desta perspectiva, eles representam o tipo de construção institucional transnacional necessária para dar mais foco e influência estratégica ao capital de exportação chinês.

Um objetivo do “pivô” da administração Obama para a região Ásia-Pacífico era prevenir a emergência de uma aliança de moeda mutuamente beneficiosa entre China, Japão e Coréia do Sul, o que teria ameaçado a supremacia das divisas dos EUA na região. Neste sentido, os EUA encorajaram uma restauração de direita no Japão através de Shinzo Abe, auxiliando a se formar um anel defensivo do Pacífico para conter a China. Além disso, os EUA patrocinaram a Parceria Transpacífico (TPP), em partes para assegurar que a região Ásia-Pacífico irá permanecer uma fortaleza do dólar. A AIIB representa a reação da China. Apesar de que os EUA colocaram intensa pressão em seus aliados europeus e asiáticos para não se juntarem ao banco, desde sua fundação em 2015 a AIIB já atraiu adesão internacional proeminente, incluindo não só importantes economias em desenvolvimento como o Brasil, a Índia e a Rússia, como também a França e o Reino Unido. Uma razão para o lento progresso das negociações do TPP é que o acordo foi centrado nos interesses dos EUA, e os retornos marginais adquiridos mediante reduções tarifárias poderiam se mostrar mínimos em comparação com as implicações financeiras. Todavia, o surgimento da AIIB compeliu os EUA a acelerar estas negociações e fazer significativas concessões, finalmente chegando a um acordo em outubro de 2015 (porém, neste momento, após todos esses esforços, a eleição de Donald Trump colocou o futuro do TPP em risco).

Estranhamente, para os EUA – que lançaram o TPP com a intenção original de bloquear a China – o AIIB demarca a primeira vez desde antes de Bretton Woods que os EUA foram excluídos de uma importante estrutura financeira internacional. Quando aliados europeus confiáveis como o Reino Unido, a Alemanha, a França, a Itália, a Suíça e outros, anunciaram sua participação, Obama convocou um encontro nacional de segurança emergencial. A razão é clara: a AIIB desafia, ainda que no âmbito institucional, a hegemonia financeira dos EUA que prevalece desde a Segunda Guerra Mundial.

Obviamente, estes aliados não estão se ausentando do sistema de dominação do dólar estado-unidense até o momento, mas sim protegendo suas apostas, visto que esta hegemonia demonstrou claros sinais de exaustação. Na criação da AIIB, a China enfatizou os interesses e a cooperação entre os países membros, para melhor atrair interesses aliados.

O primeiro país europeu a se juntar à AIIB, supostamente foi a Suíça. No entanto, visto que os oficiais suíços desejavam manter suas negociações com a China secretas e postergaram o anúncio da decisão, a Grã-Bretanha foi considerada o primeiro país europeu a anunciar oficialmente sua participação. Tanto a Suíça quanto Luxemburgo, fortalezas do capital financeiro que recusaram previamente a união à maioria das organizações internacionais, agora assinaram junto da AIIB, sugerindo que a aliança de Bretton Woods enfrenta profundas fissuras internas. Podemos chamar este processo de Dilema de Triffin do sistema Bretton Woods: os interesses dos Estados Unidos e daqueles que são seus aliados de longa data, estão começando a mostrar contradições potencialmente insuperáveis.

A coerência institucional desta aliança tem estado escorregado por algum tempo. O propósito primordial do sistema de Bretton Woods era facilitar a exportação do excesso de capacidade industrial e capital dos Estados Unidos. O interesse em crescimento pós-guerra nos EUA e a recuperação na Europa estavam garantidos. Em 1971, quando a administração Nixon desvinculou o dólar do ouro e os EUA começaram a exportar liquidez em larga escala, estes movimentos pareciam igualmente servir os interesses das instituições financeiras europeias. Mas, nas últimas duas décadas as necessidades fundamentais de ambos se tornou conflito. Reformas dentro do FMI estagnaram, pois, os EUA não queriam desistir de seu poder de veto, enquanto outras organizações financeiras internacionais dominadas a tempos pelos EUA foram incapazes de acomodar o rápido crescimento das economias do Leste Asiático. A AIIB, conduzida pela China, é um claro resultado destas tendências.

A aliança de intercambio da liquidez formada em outubro de 2014 por meio de seis bancos centrais – o Banco do Canadá, o Banco da Inglaterra, o Banco do Japão, o Banco Central Europeu, a Reserva Federal dos EUA, e o Banco Nacional Suíço – foi projetada para prevenir outra crise de liquidez em larga escala na Europa e na América do Norte, como aquela que precipitou a crise financeira de 2008-2009. Ainda assim, é apenas preventivo. O novo paradigma global agora necessita de novas instituições e proposições proativas. O FMI e o Banco Mundial (e seu subsidiário, o ADB), restringido por interesses dos EUA, não estão à altura da tarefa. Pode a China tomar esta oportunidade para controlar o desenvolvimento de uma nova aliança financeira global? Para um grande país industrial que está apenas ingressando na fase do capitalismo financeiro, crescente palco de distúrbios domésticos, o desafio não têm precedentes, e é gigantesco.

Enfraquecendo Alianças

O estabelecimento da AIIB coloca os Estados Unidos em uma posição desconfortável, porque demarca a primeira deserção significante de seus aliados mais próximos desde o advento da frente unida dos países ocidentais capitalistas após a Segunda Guerra Mundial. Os EUA criticaram duramente seus parceiros europeus, particularmente o Reino Unido, que respondeu de igual maneira. A Coréia do Sul e a Austrália foram desencorajadas de participar, para decidirem aderir no último minuto. Dos maiores aliados dos EUA, resta apenas o Japão, ansioso para recuperar seu posto militar regional, e o Canadá, que esteve indiferente desde o início.

Complementarmente a essas tensões na ordem financeira conduzida pelos EUA, existem sinais de que as alianças políticas dos EUA tanto na Europa quanto na Ásia estão sob uma tensão similar. Por exemplo, é muito difícil para os aliados europeus, particularmente a Alemanha, seguir a linha dura, o posicionamento neo-guerra fria dos EUA frente à Rússia, onde os interesses econômicos da Alemanha estão profundamente incorporados. Naturalmente, deixando de lado os ruídos dos sabres, os EUA não querem realmente entrar em guerra com a Rússia. O objetivo original da geopolítica mais ampla é fomentar conflitos entre Europa e Rússia, para melhor inibir o desenvolvimento de uma forte integração Euro-Rússia-Ásia Central. Com a crise na Ucrânia, os EUA esperavam isolar ainda mais a Rússia do resto da Europa, com apenas metade da assistência dos próprios governos ocidentais europeus.

Contradições similares surgiram na Ásia. A Coréia do Sul e a Austrália são parceiros chave nos esforços dos EUA em conter a China, assim como os membros do TPP. Ainda assim, eles também se juntaram à AIIB, em um desacordo implícito frente a arrogante influência dos EUA. Apenas o Japão, um reduto tanto da TPP quanto da AIIB, permanece um aliado leal, em grande medida pelo apoio contínuo dos EUA para sua expansão militar. As longas e estreitas ilhas japonesas carecem de recursos, e para se tornar uma nação poderosa é necessário desenvolver poder marítimo e se expandir. No fim do século XIX, o Japão derrotou a marinha do Império Chinês, e venceu logo depois a Rússia para se tornar amo da região. Na sequência, o Japão quis desafiar a poderosa força marítima dos EUA, mas foi derrotado e ocupado, se tornando por fim um vassalo do poder marítimo dos EUA. Em todo caso, as ideologias políticas predominantes nos dois países são compatíveis desde há muito tempo.

A Coréia do Sul foi por muitas décadas o principal rival regional do Japão. Uma Coréia unida seria capaz de enfrentar o Japão em termos de população, forças militares, e capacidade industrial. Mas por enquanto, a Coréia do Sul iria requerer em última instância o apoio da China. Não obstante, a perspectiva de uma Península Coreana unida prova pouca atração para os Estados Unidos, visto que o formidável trio de China, Coréia e Japão competiriam diretamente com os EUA na Ásia do Leste. Ademais, no evento da unificação, é duvidoso que a nova Coréia estivesse desejando desistir de suas capacidades nucleares, direcionando-a na procura de independência militar dos EUA. Consequentemente, quaisquer que sejam suas afinidades externas, os interesses de longo prazo dos EUA e da Coréia do Sul estão presumivelmente destinados a se transformar em conflito.

Mesmo o Japão, o aliado mais próximo dos EUA na Ásia, talvez tome seu próprio rumo. O país está enfrentando um excesso de capital, e está ansioso por novos escoamentos e exportações industriais. As corporações principais esperam que o Japão eventualmente se junte ao AIIB. Estas tendências não são novas: após a crise financeira asiática de 1997, o Japão se mobilizou para estabelecer o Fundo de Estabilização Asiático, que o teria tornado o poder financeiro dominante na Ásia, se não fosse pelo veto dos EUA. O Japão lidera o ADB, mas basicamente precisa tolerar as diretrizes dos EUA. A região tem uma demanda anual de 800 bilhões para investimentos de infraestrutura, ainda que a ADB tem apenas aprovado 13.5 milhões de dólares. A corrida pela expansão militar manteve a elite dominante liberal democrática no Japão firmemente atrás dos EUA, mas em longo prazo a subordinação do Japão de seus próprios interesses para a estratégia dos EUA pode se provar insustentável.

Enquanto a legitimidade do status de poder exclusivo dos Estados Unidos se torna fugidia, aumentam de forma diversificada os interesses de outros blocos nacionais e alianças. Contradições internas entre os Estados Unidos e seus aliados mais próximos se aprofundam cada vez mais. Será necessário um planejamento cuidadoso e uma estratégia aguçada para que a China encontre sua melhor posição nesta ordem global em transformação. Após duas décadas de crescimento rápido, a China manteve um comportamento diplomático discreto em relação ao seu tamanho e poder. Nos próximos anos, a diplomacia chinesa irá precisar de novas ideais e práticas.

Para Além do Desenvolvimento, Rumo à Justiça Social

Desde os anos 50 e passando pela década de 70, os Estados Unidos exportaram com êxito uma ideologia de desenvolvimento industrial que serviu a ambos seus interesses econômicos e militares. Após este desenvolvimentismo direcionado pelo Banco Mundial deixar muitos países emergentes pauperizados e mergulhados em dívidas externas, o discurso diplomático dos EUA se altera nos anos 80, na direção da construção institucional, da democracia e da liberdade individual. Particularmente, após a primeira Guerra do Golfo, a causa da “liberdade e da democracia” se tornou o tema principal da ideologia geopolítica dos EUA. Todavia, na última década, as incursões imperialistas no Iraque e no Afeganistão desataram um encadeamento de conflitos regionais, não apenas causando mortes e desalojamentos em escala massiva, mas fomentando a ascensão de organizações como o Estado Islâmico. O discurso oficial sobre liberdade e democracia, nada ingênuo, foi decisivamente desprestigiado. “Segurança” e “estabilidade” são agora palavras de ordem da estratégia dos Estados Unidos; as velhas causas de paz global e prosperidade se tornaram vítimas das próprias intervenções catastróficas do país.

A ideologia oficial por trás do OBOR, em contraste, é o desenvolvimento pacífico – para promover investimentos em infraestrutura e facilitar o desenvolvimento econômico, promovendo cooperação e minimizando conflitos. Não há dúvidas de que o desenvolvimento pacífico é mais sensível e sustentável do que a segurança militarizada estado-unidense; miséria e injustiça são focos de extremismo.

Porém, o discurso de “desenvolvimento pacífico” tem seus próprios pontos cegos, que refletem as contradições domésticas da China. Por exemplo, como pode o AIIB evitar os danos causados pelo Banco Mundial, entre outros, contra o meio-ambiente e os territórios indígenas? Como a China pode promover investimentos em infraestrutura que conduzam o desenvolvimento local através da diversidade e da sustentabilidade, de forma a não servir simplesmente para suas próprias necessidades de escoamento de mercadorias? O desafio, em outras palavras, é assegurar que o AIIB e o Fundo da Rota da Seda não se tornem no Leste Asiático, meramente homólogos ao FMI e ao Banco Mundial. Dado que o OBOR é uma disputa por influência institucional no Leste Asiático, o fator decisivo para o sucesso ou fracasso pode depender da competitividade de seus principais discursos. A China precisa promover uma mensagem de justiça social e desenvolvimento equitativo para contrapor ao soft power da transição institucional que os Estados Unidos promove desde os anos 80.

Deveria estar claro que este poder discursivo irá depender de ações tanto quanto palavras. Se a China continuar a absorver excesso de capacidade através da urbanização rápida sem consideração à cultura rural ou à sustentabilidade ecológica, e se o governo falhar em sua abordagem em relação às severas contradições sociais causadas pela crescente desigualdade de riquezas, disputas trabalhistas, deterioração ambiental e corrupção oficial, então os motes de um “desenvolvimentismo baseado em infraestrutura” terão pouco poder de convencimento no além-mar.

Nota Final: Aprendendo com a Sociedade Rural

Desde o fim da Dinastia Qing (1644-1911), enquanto a China passava por uma série de processos de luta por independência nacional e unidade, a sociedade rural foi central para a estrutura do governo. Sempre que um dos mecanismos tradicionais de governança está sob ataque, ameaçando os meios de subsistência dos camponeses e vilarejos, conflitos sociais sérios irromperam, às vezes a ponto de provocar levantes do campesinato. Do colapso dos Qing até a queda da República da China em 1949, violentas revoltas camponesas foram muito comuns. Mas, onde foi possível fazer uso efetivo das instituições sociais e econômicas tradicionais da sociedade rural, as comunidades camponesas foram incorporadas ao desenvolvimento do país. Particularmente, durante as últimas décadas de industrialização, a zona rural da China se tornou fonte de vasto “celeiro de mão-de-obra”, permitindo ao Estado confiar em sannong – a chamada “tríade rural” composta por camponeses, vilarejos e agricultura – enquanto alicerce para a modernização turbulenta porém contínua da China nos últimos sessenta anos.

A sociedade rural chinesa foi capaz de absorver os riscos dessa modernização em função da força de sua relação com a natureza, uma vantagem que nunca foi compreendida adequadamente. A sociedade agrícola chinesa foi formada com base em necessidades comuns, como a irrigação e a prevenção de desastres. Esta interdependência cria uma racionalidade coletiva, integrada à comunidade, ao invés de camponeses individuais e familiares, como unidade básica de distribuição e compartilhamento de recursos naturais. O foco nas necessidades coletivas funciona diretamente no sentido oposto da ênfase Ocidental em interesses individuais. Por milhares de anos, a sociedade agrícola chinesa se tornou organicamente integrada com a diversidade da natureza, originando uma religião endógena politeísta. Enquanto planeja e promove sua visão de desenvolvimento sustentável e comércio pacífico, a China deveria olhar para dentro, para estas antigas estruturas sociais, como um guia para o futuro.

* Versão traduzida do texto publicado originalmente em inglês In: SIT TSUI, EREBUS WONG, LAU KIN CHI, and WEN TIEJUN. One Belt, One Road China’s Strategy for a New Global Financial Order. Monthly Review, jan., 2017. Agradecemos a Professora Renata Couto Moreira (Economia UFES) pela cedência da tradução.

Notas

1. ↩ Este artigo é resultado de um subprojeto sobre “Estudos Comparativos Internacionais acerca da Segurança Nacional no Processo de Globalização”, dirigido por Sit Tsui, Southwest University, que faz parte de um projeto mais amplo, “Um Estudo sobre a Estrutura e o Mecanismo da Governança Rural Básica para a Segurança Nacional Geral”, conduzido por Wen Tiejun na RenminUniversity, Beijing, e financiado pela Fundanção Nacional de Ciências Sociais da China (No. 14ZDA064).

2. ↩H. J. Mackinder, “The Geographical Pivot of History,”Geographical Journal23 (1904): 421

3. ↩H. J. Mackinder, DemocraticIdealsand Reality: A Study in thePoliticsofReconstruction (Washington, DC: NationalDefenseUniversity Press, 1996), 150.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *