O professor Rober Iturriet é o segundo entrevistado da série do Front sobre a crise do Rio Grande do Sul. Doutor em Economia do Desenvolvimento. Professor Adjunto do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul- UFRGS, foi pesquisador da Fundação de Economia e Estatística – FEE e diretor sindical do Sindicato dos Empregados em Empresas de Assessoramento, Perícias, Informações e Pesquisas e de Fundações Estaduais do Rio Grande do Sul – Semapi.
O Rio Grande do Sul foi um dos primeiros estados a construir um caminho próprio voltado para o desenvolvimento econômico e social, na primeira República. Em que momento este projeto foi abandonado e por quê?
Por influência dos positivistas, o estado do Rio Grande do Sul foi um dos primeiros a constituir uma burocracia capacitada para pensar, planejar e executar o desenvolvimento a partir do Estado. Com o fim do Império do Brasil, os estados sub-regionais passaram a ter mais autonomia. A pressão política de algumas categorias fez com que os governantes da época garantissem a aposentadoria integral aos servidores públicos de diversos órgãos instituídos. Assim, em meados da década de 1940, já tínhamos um acúmulo de aposentados na folha do estado, enquanto outros estados ainda nem tinham uma burocracia bem estabelecida.
Ao contrário do que muitos imaginam, esse direito à aposentadoria integral não mais existe. Havia a possibilidade de incorporar cargos de chefia e hoje não mais. Os servidores novos estão limitados ao teto do INSS, tal qual o setor privado. Vários direitos foram retirados e as condições dos entrantes são outras. Entretanto, o Rio Grande do Sul possui um volume muito grande de servidores inativos nos termos antigos, não apenas por esses motivos, mas também porque a expectativa de sobrevida no estado é elevada, o que é algo positivo. Além disso, tivemos uma ampla cobertura de educação estadual, no ensino fundamental e médio. De forma que boa parte desses aposentados são professores, na maior parte mulheres, que, a despeito dos salários baixos, vivem mais e se aposentam mais cedo, seja por serem professores, seja por serem mulheres. Então acumulamos um volume tão elevado de encargos de aposentadorias e pensões, que começou a ficar difícil para o estado ter recursos para outros fins.
Há ainda outros motivos. A lei Kandir penalizou muito as contas públicas. Na década de 1990 houve um volume muito grande de renúncias fiscais. No mesmo período formalizou-se um contrato com a União com cláusulas desfavoráveis. A sobrevalorização do real atrapalhou os setores exportadores que se destacavam no estado. Houve competição dos produtos primários da Argentina e do Uruguai, após a formação do Mercosul. A Constituição de 1988 gerou uma redução da representatividade dos estados em comparação com os municípios, ao tempo em que a União tem mais espaço político. A dificuldade de estabelecer consensos políticos no Rio Grande do Sul, que impede a continuidade de políticas implementadas pelos governos. Em suma, são vários os motivos que geraram problemas que atingiram as finanças públicas estaduais, de forma que atualmente governar o estado virou administrar o caixa. A conjuntura da década de 1990 foi um divisor de águas, mas a crise fiscal do estado é mais antiga.
Nos últimos anos, a economia gaúcha organizou-se quase que definitiva e exclusivamente para a produção do agronegócio exportador que, por um lado, tem pouco valor agregado e, por outro, é isento de tributação pela Lei Kandir, logo não compartilha crescimento com o restante do Estado. Ainda, há um Estado dilapidado por privatizações e endividado nacionalmente, portanto, sem condições ideais de intervir como agente de desenvolvimento. Como e qual modelo de desenvolvimento construir nestas condições? Ou como superar este círculo vicioso?
No início do século XXI, houve um momento muito favorável do preço dos produtos primários, o que auxilia a explicar a reprimarização da pauta de exportações tanto do Brasil, mas em particular, do estado do Rio Grande do Sul (RS). O crescimento da economia chinesa e a elevação dos preços da soja fizeram com que este produto elevasse muito sua participação nas exportações. Os chineses compram o produto bruto para processar na Ásia, não apenas por escolha tática, mas também porque o custo de transporte do produto in natura é muito menor. A despeito dos problemas, a economia gaúcha continua com uma complexidade considerável. São produzidos caminhões, carros, máquinas agrícolas, equipamentos de saúde, móveis, máquinas, fertilizantes, temos parques científicos e tecnológicos, enfim, a atividade econômica é complexa.
A condição das finanças públicas é um constrangimento imenso. O estado não vai sair da situação atual sem auxílio da União. As condições do contrato já foram melhoradas, mas precisaremos de um refinanciamento e de um projeto de longo prazo, de preferência com dinheiro novo. Uma reforma do Estado parece inevitável, mas é possível também sair da pauta única de Estado mínimo. Governos passados efetuaram privatizações para aliviar as contas públicas, as empresas foram e as dívidas aumentaram. Concretamente, o número de servidores públicos no RS vem caindo desde 1991. Os salários de muitas categorias está em queda em termos reais desde 2014. Mas temos distorções legais na repartição dos recursos entre os poderes. O poder judicial, o legislativo e o ministério público são os primos ricos, enquanto o poder executivo está na mingua. É preciso corrigir o percentual dos repasses para sanar essas distorções. Outros ajustes podem ser feitos e alguns já estão em curso, mas os impactos contábeis são lentos.
À toda sorte, nem tudo é terra arrasada. O Rio Grande do Sul tem uma renda per capita acima da média nacional. Temos muitas universidades públicas, conceituadas universidades privadas, taxa de escolaridade mais alta do que o Brasil, uma economia diversificada, que produz de arroz a caminhões, passando por polos tecnológicos. A região da serra tem muito potencial de crescimento: acúmulo de capital, produção primária, clusters industriais, potencial turístico, setor metal-mecânico, produção de máquinas, bons indicadores sociais. A metade sul perdeu muito com os efeitos da Lava-Jato no polo que se consolidava em Rio Grande. A Petrobras deixou de lado o projeto de edificar polos navais no Brasil e os processos jurídicos levaram empresas do setor à falência. Isso afetou o projeto de crescimento do polo naval de Rio Grande. De toda forma, há também potencialidades no Sul, tanto pela produção primária, quanto por potenciais industriais existentes.
Parece indispensável o estabelecimento de alguns consensos políticos. Capacidade de crescimento econômico existe, seja por parte do capital, do trabalho, seja pelos recursos naturais. A crise das finanças públicas pode ser superada.
Porto Alegre foi um berço de think thanks liberais desde a década de 80, influenciando muitos dos novos movimentos liberais de hoje. Também já foi a vitrine do projeto petista, cujo auge foi o Fórum Social Mundial. Considerando ainda que a tendência político-eleitoral do estado não adere a extremos alterando-se, ora a esquerda, ora a direita. Quais seriam os projetos e respectivas forças políticas em disputa hoje no RS?
O RS sempre participou ativamente da política nacional, até mesmo nos momentos de ruptura com o Estado Nacional, como foi o caso da Revolução Farroupilha. A sangrenta Revolução Federalista também marcou a história. Houve grande influência de personagens positivistas na edificação da política nacional. A esquerda gaúcha marcou a história nacional: o presidente João Goulart, Leonel Brizola, que foi um grande líder da esquerda brasileira. De outro lado, o conservadorismo gaúcho tem muito peso. O apego à tradição, a valorização da figura masculina, a cultura que engrandece o que é local, esses são traços tipicamente conservadores. O Fórum da Liberdade ensaiava uma união entre o conservadorismo e ideais liberais, que consolidaram uma hegemonia no Brasil atual. De outro lado, o Fórum Social Mundial colocou Porto Alegre em todos os jornais do mundo.
Na esteira do momento político nacional, no campo da direita, há uma disputa entre conservadores e liberais. Entretanto, os conservadores estão com a hegemonia no momento. A bem da verdade, o crescimento do conservadorismo é global. A aliança tática dos liberais com os conservadores os deixou como força auxiliar, conseguindo espaço apenas no liberalismo econômico. Assim, vai constituindo-se um bloco com hegemonia conservadora no estado, ainda que o governador atual não seja dessa linhagem. Parece que este grupo vai ter fôlego, pois encontra respaldo na classe média, no zona rural e na zona urbana. Os liberais cresceram também, mas estão sob o guarda-chuva conservador. Se esses quiserem ganhar espaço, terão de se afastar das alas radicais.
O lado da esquerda é também sólido no estado. Está momentaneamente fragilizado por inúmeras questões. Mas há no estado imprensa de esquerda, intelectuais de esquerda, movimentos sociais consolidados, artistas engajados, sindicatos grandes, personagens políticos com voz nacional, experiência de gestões políticas. Há também sinais de crescimento de uma esquerda mais afastada do centro político. Núcleos de reverberação dessa esquerda parecem estar em organização crescente. Momentaneamente, na resistência, acumulando forças, na defensiva. Mas a política é muito dinâmica. Quando os ventos virarem, será fundamental ter consolidado raízes em movimentos concretos de formação de quadros e de debate político. Creio que isso esteja em curso.
Em 2018 a China foi responsável por mais de 29% das exportações gaúchas, caracterizando-se como o principal parceiro comercial do RS. Sendo a China um país disposto a fazer investimentos em infraestrutura, indústria de transformação e tecnologia, tratados de cooperação nesse sentido não seriam uma saída de curto e médio prazo para combater a crise estabelecida no Estado?
A China tem crescido na representatividade comercial de todos os países e regiões. A ascensão desse país é bastante visível. Os governos de Lula e Dilma tinham uma clara aliança com a China. Mesmo que o Brasil não tenha rompido com os Estados Unidos (EUA), estava ao lado de Rússia, China e Índia, em um bloco que, ao final das contas, disputa a hegemonia com os norte-americanos. Estabeleceu-se o banco dos BRICS, formaram-se vozes de contestação ao dólar e à ingerência dos EUA nos organismos multilaterais.
O governo Trump é uma reação do império americano ao poder chinês e a seus aliados, sobretudo russos e brasileiros. Então, o Brasil é palco de uma disputa de hegemonia entre China e EUA. Temer marcou o alinhamento aos EUA, mas o governo Bolsonaro significa uma total submissão à Casa Branca. Os inimigos dos EUA se tornaram imediatamente inimigos do Brasil.
De sorte que não sabemos qual será a estratégia chinesa. O gigante asiático vinha investindo maciçamente no Brasil e no continente africano, pois tem interesse em materializar áreas de influência política e comercial que sejam fontes de recursos naturais. Eles têm interesses em investir em petróleo, carvão, energia elétrica, na agropecuária, na infraestrutura, no setor financeiro, enfim, em várias áreas. Neste momento, seria uma fonte preciosa de recursos para preencher tantas carências que temos. Mas a política do governo Bolsonaro pode colocar tudo isso em xeque. Por aqui, precisaríamos de mais vozes contra essa política de ataque ao principal parceiro comercial do Brasil, sobretudo por parte de líderes empresariais e do agronegócio, que têm muito a perder com um conflito gratuito com a China. Atores críticos a essa postura nas relações exteriores podem ser decisivos à formação desta importante parceria com a China, país que vai se consolidado como polo de poder mundial.